Por: Dorival
da Costa dos Santos (Nei)
As palavras podem
ser vazias,
um discurso pronto,
pura demagogia,
engodo,
enfim,
manipulação,
dissimulação.
Mas um exemplo...
Ah! Um exemplo
dificilmente pode se dissimulado.
Fazer é
envolver-se, é estar inteiro, é doar-se além das promessas.
“Demagogia é a
capacidade de vestir as ideias menores, com palavras maiores.”
Abraham
Lincoln
A voz histriônica,
os gestos teatrais, o discurso arcaico e rococó eram indícios
suficientes a indicar a tragédia que viria em seguida, a postura
caricatural seria cômica, se não fosse trágica: o senador Randolfe
Rodrigues, figura impoluta da defesa intransigente dos ideais da
esquerda, paladino quixotesco da ética e da moral pública, com os
braços de Rosemiro Rocha envoltos em seu frágil pescoço, apanha a
mão de Robson Rocha – filho e herdeiro politico daquele que o
afaga – a ergue dramaticamente e esbraveja: “Eis
aqui o prefeito que será em tudo o melhor para Santana”.
Testemunha deste fato me ocorre de imediato à mente que, às
vésperas de algumas eleições passadas, o então deputado estadual
Randolfe Rodrigues era o principal ativista da famigerada CPI do
Narcotráfico e vociferava contra o dito Rosemiro Rocha o alcunhando
de “deputado
narcotraficante”.
Diante dessa aporia
uma pergunta ao senador não quer calar: EM
QUE MOMENTO, SENADOR RANDOLFE RODRIGUES, O SENHOR ESTÁ MENTINDO:
quando qualificava o deputado Rosemiro Rocha como criminoso, em tudo
pernicioso para a vida pública ou agora que o qualifica como
liderança de um projeto em tudo melhor para Santana? Há ainda uma
ilação possível que, diante do respeito à amizade que ainda nutro
pelo senador, recuso sequer a considerar, mas por respeito à lógica
sou obrigado a manifestar: que
o nosso pequeno senador considere efetivamente um criminoso, notório
malversador da coisa pública a melhor liderança para conduzir os
destinos do município de Santana.
Entre potoqueiro e
farsante, prefiro ter o senador Randolfe como mentiroso. Penso que um
juízo dessa natureza, a despeito da gravidade que lhe está
inerente, quando contraposto ao seu honrado passado é bem melhor do
que o de cumplice
cínico de um criminoso.
Seja como cínico,
seja como mentiroso, o que ficou inequivocamente cristalino diante da
escolha do senador Randolfe nas eleições em Santana é sua
manifesta hipocrisia, ou seja, que o mesmo não passa de um politico
populista e demagogo à moda antiga, travestido de novidade por
certo, mas por dentro da casca engajada nos valores da esquerda, mora
confortável e tranquilo um político tradicionalíssimo: narcisista,
fisiologista e arrivista, sem nada a dever a um Demóstenes Torres,
por exemplo.
Quando,
aparentemente, a politica havia atingido o fundo do poço da História
com o sucesso do nazi-fascismo, Hannah Arendt a grande pensadora da
politica e do poder no século XX, com uma força intelectual
solitária a reergueu ao patamar da dignidade, defendendo que esta
era a atividade por excelência que nos constitui como humanos e,
portanto, muito grande e importante para ser aviltada.
Em termos harenditianos a dignidade é o princípio ético para não
aviltar a politica, para não apequenar a vida. A dignidade é a
força espiritual que nos mantem íntegros nas adversidades ou em
momentos de cantos sirenicos; dignidade e integridade são irmãs
siamesas. Como disse Todorov: se a sociedade nos condena, a dignidade
consiste em combater essa sociedade. Podem vilipendiar nosso corpo,
nossa sanidade, mas NINGUÉM ou NADA é capaz de retirar a nossa
liberdade de escolha. Mas para ser digno “não basta tomar uma
decisão para si mesmo, é preciso que a essa decisão siga-se um
gesto consequente, perceptível e [significativo] para os outros”.
Contudo movidos pela síndrome de vira-latas é banal ouvir: “ser
honesto no Brasil é para os tolos e ingênuos”, mas essa também é
uma escolha.
Nós atingimos uma paz de espirito quando o que queremos coincide com
o que devemos e o que podemos. Quanto mais cristalinos os princípios,
menos difícil fica lidar com os dilemas da vida. É absolutamente
impossível viver uma vida sem escolhas, e o único modo de suportar
esse peso da condição humana é ter sempre como instrumento
racional básico de nossas escolhas a integridade, a dignidade.
Afinal “o que é uma pessoa íntegra? É uma pessoa correta, justa,
honesta, que não se desvia do caminho que, na esfera do discurso,
ela própria estabeleceu para si mesma. É uma pessoa que não tem
duas caras. Qual a grande virtude que uma pessoa íntegra tem? Ela é
sincera”.
De onde vem a palavra sinceridade? Os manuais de história nos
demonstram que ela é uma palavra polissêmica, seu sentido mais
recente vem da marcenaria. No século XIX, quando o marceneiro, ao
trabalhar com aqueles móveis chamados coloniais, errava com o
formão, ele pegava cera de abelha e passava naquele lugar para
disfarçar o erro. Sine cera significa “sem cera”, uma
pessoa sincera é aquela que não disfarça o erro, ela assume. Em
vez de fazer de novo, o marceneiro farsante finge que está certo
passando cera de abelha.
Senador Randolfe: Ética não é cosmética! Ética é sinceridade.
Somos colegas de profissão, tenho certeza que o senhor sabe de onde
vem a expressão original “sincera”. Apenas para avivar-lhe a
memória: no latim sine sera, sem cera, vem da criação de
abelhas. Qual é o mel puro, o da geleia real? Não. É o mel sem
cera. A noção de pureza está aí. Mas ela vem do teatro também. O
mundo romano herdou parte dos princípios do teatro grego. No teatro
grego, da Antiguidade Clássica, de 2500 anos atrás, havia uma
situação muito interessante: todas as vezes que uma peça seria
representada, os atores eram sempre homens, não havia espaço para
as mulheres. Para que um ator pudesse fazer vários tipos de papéis,
inclusive os femininos, eles construíam uma máscara feita de argila
que seguravam na frente do rosto com uma varetinha. Que nome os
latinos deram a essa máscara dos gregos? Persona. Daí
vieram “personagem” ou “personalidade”.
Aliás, tem gente que usa várias dessas máscaras. Deixa uma em
casa, outra no Senado, nos holofotes da Globbels usa outra, trás
outra diferente para Macapá e porta uma diversa em Santana.
Comporta-se em Brasília de um jeito e, no Amapá, de outro. Ele não
admite no Congresso o menor deslize ético de um colega, mas pouco se
incomoda se ele mesmo comete os seus ou legitima os de outros. Esse
tipo prega que na vida pública tem que ter mais participação das
pessoas, quer participar das decisões de um determinado patamar da
hierarquia para cima, mas não acha e não age para que deva haver
democracia dali para baixo.
Os romanos herdaram do teatro grego essa ideia de homens
representando todos os papéis, mas, em vez de construírem máscaras
de argila adotaram outra técnica: eles pegavam cera de abelha,
misturavam com pigmentos vegetais e faziam uma pasta, que era passada
no rosto. É por isso que uma pessoa sincera é uma pessoa sem
máscara, que não tem duas caras, é aquela que não fala uma coisa
e pensa outra, é aquela que não diz uma coisa e age de outro modo.
A sinceridade é, de fato, um dos elementos constitutivos da
integridade e da dignidade.
Esse texto é um misto de decepção e revolta. A história de
amizade, companheirismo politico e profissional que construí com o
hoje senador Randolfe Rodrigues remontam à época em que o dito cujo
era meu aluno e uma promissora liderança estudantil; desde então
divergirmos inúmeras vezes, a mais importante quando da sua saída
do Partido dos Trabalhadores; mas nunca, nunca nessa trajetória de
mais de vinte e cinco anos, sequer cruzou na minha mente uma centelha
de dúvida quanto à sincera adesão desse meu amigo aos valores da
esquerda.
No entanto, hoje, por um gesto, por uma escolha do amigo, sou
obrigado a por em dúvida a sinceridade de seu engajamento aos
valores que orientam a construção de uma sociedade libertária,
justa e fraterna. Torço para que tenha sido uma escolha desastrada
que lhe permita retomar o caminho da construção de uma utopia de
justiça e liberdade; adianto-lhe apenas que a toda escolha agrega-se
uma responsabilidade, e essa, no curso da história que está por
vir, vai cobrar seu preço, qual seja, o seu apequenamento politico.
Hoje o senhor até pode ser eleitoralmente vitorioso, ainda que eu
entenda que tenha sido uma vitória pírrica. Não sou a mãe Dinah
para prever futuros, mas hoje também começou a sua derrocada, a
ladeira abaixo da sua degenerescência como homem público.
Tenho a firme sensação que aconteceu em relação à escolha do
senador Randolfe Rodrigues em Santana uma das coisas que eu mais temo
quando se tem em mira um debate ético: é a chamada adesão
cínica. É quando o sujeito diz: “A ética é a
condição sine qua non para o futuro do Brasil”. Mas, ele
mesmo, no dia a dia, comporta-se da seguinte maneira: “Ética? Isso
é de menos. Poder não casa com ética. O mundo politico é
competitivo, a regra básica é cada um por si e Deus por todos.
Interessa-me as posições de poder, pouco me importa os meios de
atingi-las”. Esse tipo de adesão cínica é muito perigoso.
Alguém já disse em outro lugar: eu prefiro o mentiroso ao
cínico. Porque o mentiroso é alguém que você captura
a mentira dele, mas o cínico finge o tempo todo. E esse é o tipo
mais deletério, porque dá a impressão de que está aderindo, que
está engajado na causa e, como não está, enfraquece a corrente
daqueles e daquelas que acham que a politica é muito grande e
importante para ser aviltada.
Dorival da Costa dos Santos. Advogado, Professor de
História da UNIFAP, Mestre em História Social pela UNICAMP e
Doutorando do Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito da
Universidade Federal Fluminense.